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Da hostilidade à hospitalidade

Publicado a
18/12/2025

Vamos no caminho errado. Têm-nos empurrado nos últimos anos — e nós deixamo-nos ir — para uma crescente hostilidade face aos imigrantes, como é demonstrado neste estudo recente. Desde o discurso público à conversa de café, mas sobretudo nas redes sociais, emergiram medos e desconfianças, cultivados por uma suposta “invasão” e uma crescente diversidade de origens que nos “ameaça”. Uns, quais “engenheiros do caos”, exploraram a raiva e multiplicaram-na pelo algoritmo nas redes sociais, exponenciando o efeito perverso das mentiras manipuladoras. Outros transformaram maliciosamente os imigrantes no “bode expiatório” de tudo o que não funciona, ou que escasseia, seja a saúde ou a habitação.


O fogo do ódio foi-se acendendo e agora já vai consumindo relações de confiança. As vozes xenófobas e racistas foram-se sentindo legitimadas e falando cada vez mais alto. E a larga maioria de nós foi-se calando, não emprestando a sua voz à causa da hospitalidade e da coesão social. Cresceu um silêncio ensurdecedor, ao lado dos gritos hostis do ódio.

Esta hostilidade é tanto mais injusta quanto a hospitalidade é um dever ético, moral e civilizacional.

Mas há mais. Esta ascensão da hostilidade face aos imigrantes é injusta. Nesta última década — a do crescimento da imigração —, Portugal manteve taxas de quase pleno emprego e baixas taxas de desemprego (atualmente 5,8%, face aos 12,4% em 2015). Não teve crescimento da taxa de criminalidade. Cresceu economicamente quase todos os anos (com exceção do período da covid) e diminuiu o endividamento externo (de 131% do PIB para 93,6%). Reavivámos sectores que corriam o risco de desaparecer — como a agricultura, com 40% dos trabalhadores imigrantes — e vivemos à conta da pujança do sector do turismo (31% dos trabalhadores são imigrantes), para não falar de outros sectores como, por exemplo, o das pescas ou o da construção civil. Finalmente, a revista The Economist considera em 2025 Portugal a “economia do ano”. Tudo isto foi alcançado também com o contributo dos imigrantes. São co-construtores deste sucesso.

Mas esta hostilidade é também pouco inteligente. Inevitavelmente vai introduzir no dia a dia fontes de crispação e de ressentimento. Vai-nos colocando uns contra outros e permitindo que os discursos de ódio se espalhem, com um reflexo em espelho. Estamos a semear ventos, dos quais nascerão — provavelmente — tempestades. Sabemos da História que, cada vez que há um largo capital de ressentimento e de humilhação, mais tarde ou mais cedo, virá ao de cima o desejo de vingança. E alguém manipulará maldosamente essa revolta, incendiando tudo o que puder.


Além disso, é completamente insensato, numa perspetiva de interesse próprio, deixar que se desenvolva esta hostilidade perante uma realidade — a imigração — da qual dependeremos para manter o nosso nível de desenvolvimento económico. A economia portuguesa só terá trabalhadores suficientes dessa forma. Veja-se o recente exemplo de Itália, de Meloni, que se viu obrigada a abrir um novo processo de recrutamento de imigrantes pelo risco de colapso de alguns sectores da sua economia.

Precisamos de reencontrar o caminho da hospitalidade

Como reconstruir a hospitalidade e a coesão social entre autóctones e imigrantes? Portugal já soube ser uma sociedade que acolhia e integrava bem os imigrantes que recebia. Ainda que nunca de uma forma perfeita e completa, tínhamos dado passos no bom sentido. Hoje, precisamos de mobilizar vontades e estratégias que permitam voltar a percorrer esse caminho.


Temos de reafirmar, sem hesitação, o princípio de “uma só família humana”, sem que isso seja incompatível com a regulação de fluxos migratórios. É muito mais o que nos une do que o que nos separa. A mobilidade humana regulada, com boa integração e inclusão, pode ser uma excelente oportunidade de repartição de recursos e de desenvolvimento para todos. Para isso, precisamos de uma cultura de hospitalidade.

A mobilidade humana regulada, com boa integração e inclusão, pode ser uma excelente oportunidade de repartição de recursos e de desenvolvimento para todos. Para isso, precisamos de uma cultura de hospitalidade.

A defesa incondicional do Estado de Direito, como poderosa ferramenta de promoção da dignidade humana, deve começar no bom funcionamento — a tempo e horas — das estruturas responsáveis da regularização administrativa e legal dos imigrantes. Sem isso, a vulnerabilidade dos imigrantes é enorme. Nesta linha, o Estado deve mobilizar-se para inspirar confiança, e não medo, na sua relação com os imigrantes, sendo particularmente protetor dos mais vulneráveis, vítimas dos múltiplos circuitos de exploração humana.

Por outro lado, a sociedade como um todo deve investir na criação de laços entre quem chega e quem está, desde a Educação às atividades comunitárias, desde o lazer à cultura e ao desporto. Quem emprega, deve respeitar escrupulosamente a lei e quem arrenda casas deve ser decente nos contratos que propõe — quer a autóctones quer a imigrantes.


Neste caminho da construção de hospitalidade, ninguém ficar indiferente à sua responsabilidade de promover um verdadeiro encontro de Pessoas, de rosto humano e com aspirações comuns. Devemos evitar remetermo-nos a categorias (migrantes, refugiados, …), nem nos deixarmos cair na outrificação (“eles” contra “nós”). Há que dar visibilidade às histórias de esperança e de sacrifício que nos aproximam. Precisamos de uma cultura de reconhecimento mútuo. De encontro entre cidadãos que partilham um destino comum, para o qual podem contribuir e do qual devem beneficiar.

Precisamos de falar de esperança, apesar de tudo.

Ainda que pareça difícil, particularmente neste tempo de hostilidade, há que reencontrar razões de esperança, a propósito deste tema que hoje nos fratura e agita.

Precisamos de ter esperança na sabedoria dos nossos genes. Que esta nos lembre que sobrevivemos e prosperámos quando cooperámos em larga escala e que soçobrámos sempre que nos dividimos e nos odiámos.

Precisamos de ter esperança na nossa inteligência relacional. Que esta nos faça parar nesta corrida para o abismo, antes que seja tarde demais e nos mostre que, juntos, poderemos ser capazes de muito mais.

Finalmente, precisamos de ter esperança no reacender da nossa humanidade partilhada e fraterna. Que um dia, volte a ser essa a regra.

Este artigo foi publicado no Jornal Público do dia 18 de dezembro de 2025.

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