São imigrantes e refugiadas em Portugal e querem mostrar o rosto e a voz da mulher muçulmana. Pela inclusão e diálogo, contra o ódio e o preconceito. É possível construir pontes?
O medo ainda tinha tudo. Safaa Ibrahim chegara a uma aldeia de Barcelos ao abrigo de um programa de recolocação, com o marido e os filhos gémeos de apenas um ano. Para trás ficara uma fuga dolorosa e uma Síria em guerra, pela frente havia um país do qual não conheciam sequer o nome, uma língua estranha, olhares desconfiados de vizinhos. Recomeçaram como podiam, com o peso do passado e o medo do presente. “Sentíamo-nos muito sozinhos, mesmo entre pessoas. Tivemos tanto medo”, recorda a síria de 31 anos. Um dia, Isabel Martins da Silva, voluntária de um grupo de jovens que os acolheu em Barcelos, levou-a a uma mesquita em Braga. “Ela ficou com os meus bebés e eu entrei.” Até àquele instante, ela não sabia sequer da existência de espaços de culto islâmico em Portugal. Lá dentro, atenuou a dor, recuperou alento: “Foi a primeira vez que me senti bem em Portugal.”
Safaa Ibrahim conta a história para ilustrar a importância da religião na sua vida. “É o lugar onde me sinto em paz”, explica, no jardim de uma escola católica de Gondomar que, no início do mês, abriu as portas para a celebração do Eid-al-Adha, uma das principais festas religiosas do Islão. O piquenique juntou famílias muçulmanas de várias nacionalidades, algumas pessoas da MEERU – Abrir Caminho, associação nascida desse grupo de jovens que apoiou a família de Safaa, e convidados de todos eles. À volta da mesa, muçulmanos e cristãos partilharam petiscos e mostraram que o diálogo não é uma utopia. Foi mais um passo rumo à criação da Afaq, uma associação de mulheres muçulmanas migrantes e refugiadas em Portugal.
Se tudo correr como planeado, a associação – cujo nome significa “horizontes” em árabe – será formalmente constituída ainda este ano. O grupo de 14 mulheres, de várias nacionalidades, juntou-se para mostrar o rosto e a voz da mulher muçulmana e já elegeu o seu lema: “O Islão é a nossa casa. E Portugal também.”
O processo começou em 2024. Ao perceber a existência de várias religiões dentro da comunidade MEERU, a associação decidiu “apalpar terreno no mundo do diálogo inter-religioso” com o projecto Bridges of Faith. Em Fevereiro desse ano, pouco depois do conflito israelo-palestiniano se agudizar, promoveram uma conversa com um judeu, um muçulmano e um cristão. “Foi um sinal bonito da possibilidade de diálogo”, aponta Isabel Martins da Silva, vice-presidente da direcção da MEERU.
Enquanto outros encontros aconteciam, chegava-lhes um desafio do programa Juntos Porto, da Fundação Aga Khan Portugal e Fundação "la Caixa”: apresentar projectos que promovessem a participação cívica e comunitária. “Começámos a provocar a nossa comunidade e a perguntar-lhes o que seria”, conta Pedro Amaro Santos, presidente da direcção da MEERU.
Em Novembro, a comunidade mostrou a sua vontade: criar uma associação de mulheres muçulmanas migrantes e refugiadas em Portugal. Mulheres sírias, marroquinas, tunisinas, egípcias, argelinas. “A religião é o fio que as une, mas em termos culturais são muito diferentes”, desenvolve Isabel.
Nessas conversas sem guião, falaram sobre os desafios enfrentados como famílias migrantes ou refugiadas, algumas com crianças: dores e memórias do país do qual saíram, viagens mais ou menos atribuladas, chegadas mais ou menos apoiadas, aprendizagem da língua, trabalho, habitação, burocracias complexas. Ilham Mohib estava nesse grupo: “Depois de identificar os desafios, pensamos em ideias e propostas para os enfrentar”, conta a marroquina de 37 anos para quem a comunicação é a senha contra o preconceito. “Quando comunicamos bem não temos problemas”, acredita.
Em Portugal há dois anos, Ilham Mohib trabalha como mediadora comunitária para a Médicos do Mundo. “No trabalho, há sempre pessoas a fazer-me perguntas para melhor compreenderem.” Não parece ser, infelizmente, a postura dominante. Quem o sente é Safaa Ibrahim: “As redes sociais estão a promover a islamofobia. Não percebo o porquê de tanto ódio. O preconceito está a crescer.”
A Afaq é, por isso, cada vez mais precisa. Além de ser um lugar seguro para estas mulheres se encontrarem e partilharem dores e alegrias, abraça também uma vontade de dialogar com a sociedade que as acolheu. E dizer-lhes, antes de tudo, que o lugar da mulher muçulmana é onde ela quiser: “Aqui, há uma ideia de que não podemos fazer nada por causa dos maridos. Isso não é verdade”, aponta Ilham, sublinhando que a representatividade importa. Safaa completa a explicação: “Estão a misturar cultura com religião. Há culturas que oprimem as mulheres, é verdade. Mas a religião respeita a mulher. Gostava que as pessoas com dúvidas, antes de julgarem, perguntassem.”
A associação quer também promover o diálogo e conhecimento nas escolas. Falando com as crianças, explicando o que é o Islão, desconstruindo preconceitos. Safaa já o fez na escola dos filhos e acredita que o caminho a trilhar é esse: “A partir daí podemos começar a destruir esta mentalidade. Muitos pais são contra, mas também eles têm de ser formados. Não julguem as pessoas sem as conhecer ou uma religião inteira por uma má prática de uma pessoa.”
Estas mulheres querem também criar um lugar seguro para os seus filhos, muitos já nascidos em Portugal, com duas identidades em construção e por vezes em conflito. “A integração das crianças numa comunidade, cultura e religião diferentes preocupa-nos”, assume Ilham. A Afaq quer ser casa dessa integração sem esquecer as raízes: “Queremos ter aulas de árabe, guardar a nossa religião e nossas práticas. E, ao mesmo tempo, ensinar a respeitar o cristianismo.”
O reconhecimento das festas religiosas muçulmanas é também uma batalha: “É um direito fundamental numa sociedade democrática e justa como a portuguesa”, diz Safaa. Nas escolas, os alunos muçulmanos devem ter direito a ausentarem-se nesses dias sem penalização – tal como os cristãos o fazem na Páscoa ou no Natal. “Isso contribuiria para um ambiente escolar inclusivo, respeitador e empático. Aprender a aceitar o outro, a conhecer outras culturas e religiões.” Para os trabalhadores muçulmanos, a lógica deve ser a mesma: devem ter direito a uma dispensa remunerada nesses dias. “Obrigar um trabalhador a escolher entre a sua fé e o emprego é uma forma de desrespeito. Não é um privilégio, é um sinal de maturidade democrática e respeito pelos direitos humanos.”
Combater o medo
Tânia Sérgio é convidada da MEERU no piquenique. Amiga de Isabel e Pedro, cristã e pouco conhecedora da religião islâmica, quis abrir portas ao desconhecido. É com iniciativas destas, acredita, que os muros começam a cair. “À volta de uma mesa conseguimos falar de coisas tão complexas como a religião.” Conseguem, sobretudo, desconstruir ideias feitas: “O desconhecido traz medo. E estes eventos ajudam a quebrar esse medo tornando o desconhecido mais palpável.”
Para ele, cristão praticante, as pontes são possíveis e mais fortes do que quem as quer derrubar: “O desconhecimento é terreno fértil para um discurso negativo e, muitas vezes, violento. Conhecendo as tradições religiosas de pessoas que estão na nossa sociedade e partilhando espaços podemos ter mais conhecimento sobre o mundo.” É uma questão de “naturalizar relações” e, se for preciso, assumir o desconhecimento e “fazer perguntas”. Até porque, acrescenta, uma “aproximação à verdade” só é possível com um olhar múltiplo. “Ver um objecto de um prisma único deixa uma série de ângulos mortos.”
Safaa Ibrahim deixou para trás a família, os amigos, o curso superior de educação básica, todo o mundo que conhecia até então. O namorado, opositor do regime sírio, era perseguido. Ela, por consequência, também. Quando descobriu a gravidez ganhou a coragem que até então não tinha: “Não queria que os meus filhos passassem pelo que estava a passar”, justifica. Arriscaram um “caminho desconhecido, longo, incerto, escuro” – porque ficar era também um risco.
A ferida ainda está aberta, oito anos depois. Talvez nunca feche. “Deslocamo-nos várias vezes, dormimos fora, no meio de florestas, em tendas, no deserto. Isso é uma história, o mar é outra. E a Grécia é outra.” Os gémeos nasceram nessa longa viagem entre a Síria e Portugal. “Quando cheguei só queria descansar. Um lado dizia-me para não ficar porque as pessoas não me compreendiam, ninguém falava a minha língua. Mas estava muito cansada para recomeçar de novo.”
A ajuda dos voluntários – que, tempos depois, formariam a MEERU – foi decisiva. Ela também foi decisiva para os voluntários: “Sem a Safaa não existiria MEERU”, reconhece Isabel Martins da Silva.” Nessas bolhas de empatia, a vida de Safaa e da família foi-se organizando. As crianças estão na escola, integradas. Safaa retomou os estudos, fala um português quase perfeito, tornou-se tradutora intercultural da associação. O medo e o preconceito minam a integração total. “Nunca senti o conflito que sinto aqui”, desabafa. A batalha da Afaq é também por essa mudança. Um dia, talvez o Eid-al-Adha possa ser celebrado num jardim público. Seria um “sonho” concretizado: “Estarmos todos juntos, sem medos.”
Este artigo foi publicado no Jornal Público do dia 7 de julho de 2025.