Mariana Correia Pinto (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Ghufran Shlash ainda era criança quando fugiu de uma Síria debaixo de bombas. O destino de fuga, no entanto, colocou-a noutra guerra. “Como se diz?”, pensa alto, enquanto pega no telemóvel para procurar a palavra exacta: “Racismo”, encontra. “Na Turquia havia muito racismo com os refugiados.” Ghufran e a família aguentaram-se uns anos, mas acabaram por pedir ajuda à protecção internacional. “Disseram-nos que Portugal era um país seguro e calmo.” Com o marido, um filho de dois anos, pais e irmãos, embarcou na viagem. Seis anos depois, é uma das mulheres a ganhar ferramentas para entrarem num mercado de trabalho nem sempre amigável para refugiadas e migrantes. Por acaso do destino, dá esse passo num projecto com raízes no país onde nasceu.
Passa pouco das 11 horas e no laboratório da Amal, instalado numa sala do Perpétuo Socorro, no Porto, um grupo de mulheres prepara uma encomenda de sabonetes artesanais com embalagens personalizadas. Dentro de dias, serão brindes num casamento. O que ali está a funcionar é o negócio social dos sabonetes Amal, integrado na associação para o desenvolvimento MEERU – Abrir Caminho, e a fazer vendas online para todo o mundo. Em breve, haverá também uma espécie de escola: “Em vez de empregar apenas duas ou três pessoas, queríamos transformar isto numa academia”, conta Mariana Morais, coordenadora do projecto Amal Soap.
Até ao Verão, deverá estar a funcionar a primeira turma da academia Amal, com cinco mulheres num processo de estágio de dois meses. No fim desse período, as alunas podem ter acesso a um emprego numa das empresas parceiras do projecto – e dar lugar a outras cinco. “Este é o sonho da academia Amal”, resume.

Esses meses serão um ensaio para um emprego real. Com horários de entrada e saída para cumprir, obrigações de execução de tarefas, capacidade de acolher ordens e lidar com eventuais resistências ou frustrações. “Acontecer aqui, num ambiente seguro, faz com que estejam mais preparadas quando forem para empresas”, enquadra. A equipa da MEERU também dará aos empregadores algum enquadramento útil. Mariana Morais dá um exemplo: “Existe o mito de que as mulheres ou homens muçulmanos podem ser um problema por terem de rezar ao longo do dia. Mas não é de todo um problema.” Nesses momentos, conta, encontram um sítio reservado, rezam três minutos e regressam. “É o tempo de um café, de ir à casa de banho, fumar. As pessoas criam mitos nas suas cabeças porque não conhecem a realidade.”
Além da produção de sabonetes, as mulheres são responsáveis pelo embalamento, gestão de stocks, de eventos e mercados, comunicação da história e importância do projecto. “Algumas destas mulheres são sírias, algumas de Aleppo. Conseguem explicar muito melhor a história destes sabonetes.”
“Um presente”
Os sabonetes Amal – palavra que significa esperança em árabe – foram “um presente” de uma família síria que vivia em Lisboa. Maisaa Katef saíra do seu país em 2017, com o marido, três filhos na mão e um no ventre. Caminharam até à Turquia com a Europa como sonho – e um dia chegaram à capital portuguesa. Lá, Maisaa Katef abriria um negócio social de criação de sabonetes artesanais com uma receita milenar que a tia lhe havia ensinado. O sabão de Aleppo, cuja receita tem 2000 anos, é feito de azeite e óleo de louro. Miguel Esteves Cardoso já se declarou rendido numa crónica no PÚBLICO. Na Amal há quatro variações da receita: essência de lavanda, menta, erva príncipe e alecrim.
Em 2022, a vida de Maisaa e da família puxava-os para outros voos. Mas a vontade de não deixar a Amal cair era grande: “Contactaram-nos a perguntar se queríamos assumir”, recorda Mariana Morais. O sim foi instantâneo: “Nós não só já comprávamos sabonetes como os cobiçávamos”, graceja Isabel Martins da Silva, coordenadora do MEERU Aproxima e vice-presidente da direcção.

A escolha de criar uma academia só de mulheres vem do diagnóstico que a MEERU faz no seu trabalho de proximidade com as famílias que acompanha: “Há particularidades culturais que fazem com que tenham mais entraves na integração”, explica Mariana. Reerguer a vida noutro país, muitas vezes com feridas ainda abertas, pode ser um processo complexo. “A Amal quer ser também esse lugar de encontro, partilha, respeito”, aponta Isabel. Por ali, um caminho se faz: “Temos visto acontecer pequenos milagres”, alegra-se. “De repente temos uma mulher síria de mão dada com uma mulher indiana. Nos grandes encontros isso é mais difícil, num espaço mais pequeno e com um trabalho contínuo é possível.”
Algumas destas mulheres não trabalhavam no país de origem, assumiam o cuidado dos filhos a tempo inteiro, tinham empregos informais ou mesmo diplomas que Portugal não reconhece. Ilham Mohib cabe no último caso. A marroquina de 37 anos era enfermeira no seu país, mas por cá a sua licenciatura não tem validade. “Tenho de pedir equivalências e fazer algumas cadeiras”, conta. O custo desse passo, no entanto, veda-lhe a possibilidade. “Não tenho como pagar para já”, lamenta.
Ilham Mohib fala um português perfeito, apesar de estar no país há apenas dois anos. “Aprendi cá. Em aplicações, a falar, a mandar mensagens no Whatsapp, com os voluntários da MEERU.” Trabalha como mediadora comunitária para a Médicos do Mundo. Traduz o árabe para o francês. Na Amal, diz, ganha ferramentas para uma melhor integração: “Aprendemos a trabalhar em equipa, a comunicar melhor.”
A entrada no mercado de trabalho é um dos muros mais altos para migrantes e refugiadas. O acesso à habitação é outro. “Não foi nada fácil”, partilha. Ilham Mohib chegou com o marido e os filhos, agora com oito e 16 anos. “Queríamos um país seguro onde pudéssemos dar-lhes uma vida melhor. A cultura portuguesa não é muito diferente da nossa, o conceito de família é parecido. E não há racismo.”
A ajuda da MEERU – a casa mãe da Amal – foi fulcral. Quando perguntou à associação que lhe deu apoio no processo de regularização se conheciam quem a ajudasse na integração das crianças, foi ter à MEERU. Ou melhor, a MEERU foi ter com ela: “Os voluntários começaram a ir a nossa casa e tornamo-nos amigos. Até surf os meus filhos fizeram.”

Ao lado, Ghufran Shlash acena. Também para ela, a viver em Braga, a ajuda da associação foi um bálsamo. Em 2020, tinha uma irmã na Turquia, numa situação muito complicada, e sentia-se a deprimir. Durante oito meses os voluntários foram presença caseira para apoiar a família. E quando esse tempo terminou, as raízes da amizade eram fortes. “Já não nos separamos mais”, conta. Ghufran concluiu o ensino secundário em Portugal, fez um curso de auxiliar de saúde. Agora, na Amal, procura ganhar armas para um mercado de trabalho complexo. “Isto prepara-nos.”

O início de tudo…
Estávamos em 2019 quando um grupo de sete voluntários regressava de uma missão na Grécia e aguçava a vontade de burilar um projecto em Portugal. A “intuição” dizia-lhes que fazia falta algo focado nas relações: “A lacuna que identificámos foi a proximidade entre essas pessoas e os portugueses”, recorda Isabel. “Havia relações entre elas e com técnicos, mas faltavam essas pontes com os vizinhos, as pessoas de cá.”
O grupo definiu a missão: queriam ser “facilitadores de conexões”. Mas sem pressões e obrigações. “Não queríamos ser mais uns a impingir respostas sociais, mas antes construir em conjunto com eles.” O plano foi-se delineando e ficou assente nas “equipas de proximidade”.
Na prática, a MEERU funciona assim: as famílias são sinalizadas por instituições, juntas de freguesia ou chegam directamente (nos últimos anos) e a associação procura um “match” entre eles e os voluntários. Após a ligação inicial, segue-se sem um plano definido: “Não há agendas. Funciona na base do encontro, das visitas, do passar tempo juntos.” Tanto pode ser ir à praia fazer surf como ajudar nos trabalhos de casa, nas burocracias, partilhar refeições. “Depende das famílias e das suas necessidades.”
Uma regra de ouro na associação é “não criar bolhas”. “Não é suposto que estes voluntários sejam os melhores amigos daquela família e que a coisa acabe aí. É suposto serem também mediadores para problemas que as famílias possam ter, sinalizar para outras respostas, alargar a rede.” Desde 2020, com 123 voluntários, a MEERU acompanhou 35 famílias, com 159 pessoas migrantes e refugiadas de 13 nacionalidades nas cidades de Braga, Viana do Castelo, Barcelos, Trofa, Maia, Gondomar, Porto, Vila Nova de Gaia e São João da Madeira.
Isabel Martins da Silva nunca mais esqueceu a metáfora que a tradutora intercultural Safaa Ibrahim usou frente a um grupo de voluntários em formação. Para lhes explicar qual a missão que iam assumir disse-lhes que seriam, para as famílias que acompanhassem, “uma janela do que era Portugal”. Para lá dos preconceitos ou discursos de ódio: “Muitas famílias têm alguma esperança de que as coisas não estão assim tão más porque têm estas sentinelas de outra forma de ver o mundo.”
“Não gostam de imigrantes?”
E esse mundo, dizem as voluntárias, mudou muito desde o início da MEERU. E não foi para melhor. Há dias, as crianças de uma família perguntaram a um voluntário porque é que os portugueses não gostavam de imigrantes. A dor que cabia naquela dúvida roubou-lhe as palavras por segundos. “Ficou sem saber o que dizer”, conta Isabel. Na conversa que se seguiu, entendeu a origem: “Tinha visto um cartaz com essa ideia.”
Noutra família, um casal pediu-lhes ajuda por causa da casa. Não por dificuldade em pagar a renda, mas porque o preconceito lhe barrava um contrato. “Estavam os dois empregados e super estáveis. Mas o senhorio não queria. O voluntário acabou por mediar o contacto e ajudar.”
A discriminação e o preconceito existem. Apesar de não serem uniformes, diagnosticam: “Depende da nacionalidade.” Isabel explica-se: quando chegaram pessoas da Ucrânia, a generosidade era imensa e muitas pessoas contactaram a MEERU. Tinham casas disponíveis, queriam apoiar os refugiados. A associação explicava que não acompanhava ucranianos, mas que tinham várias pessoas sírias e iraquianas a precisar de apoio. “A conversa acabava aí…”
A MEERU foi ganhando braços à medida que identificava necessidades. Assim nasceram a Amal, para a questão do trabalho, ou projectos como a Human Voices (programa de storytelling e empoderamento junto de seis pessoas migrantes e refugiadas que resultou num toolkit e podcast com as histórias de vida dos participantes no programa), o Bridges of Faith (que trabalha as questões da fé e integração religiosa) ou o Reconstruir (em que são parceiros da associação Domus – Dignificar a Habitação e se propõe a construir seis casas em Tadim, Braga, com a ajuda de voluntários).
A habitação é, de facto, um problema. “Cada vez mais gritante e impeditivo”, classifica Mariana Morais. Mesmo quem chega ao país ao abrigo de algum programa que lhes atribui casa, tem esse direito constitucional garantido apenas por alguns meses. “Às vezes começam um processo de integração e de repente têm de se mudar e começar de novo.” Isabel conta o caso de uma família síria colocada na Trofa: “As miúdas estavam super integradas na escola, adoravam tudo e tiveram de sair. Foram para uma aldeia da Covilhã. Houve um desenraizamento e o caminho feito foi perdido.”

Mudar o discurso
Na associação, o momento é de reflexão, ancorado na mudança da sociedade. “A percepção pública sobre a imigração mudou e tivemos de mudar a forma como comunicamos a nossa missão. Não é com a liberdade que havia há seis anos.” O discurso adaptou-se. A escolha dos lugares onde vão também. “Temos mais cuidado em perceber quem é que nos quer entrevistar, qual o evento onde vamos, se levamos ou não um testemunho”, explica Mariana Morais.
E se no início da associação, ainda com a imagem das travessias para a Grécia no imaginário, sentiam que “era simples, com um discurso humano, mover as pessoas”, constatam agora que essa estratégia “já não funciona”. “Queremos manter uma narrativa de esperança”, sublinha Isabel, “mas perante alguns fantasmas é muito mais difícil.”
Os fantasmas são o crescimento do discurso populista e radical de extrema-direita, com representação na Assembleia da República. E como se desconstrói as “frases feitas”, se combate o ódio e a desinformação? Procurar semelhanças entre povos, dar bons exemplos e estar armado com números e factos é importante. Perceber a origem do argumento ou preconceito também. Mariana Morais dá um exemplo: “O argumento da inversão da pirâmide demográfica pode funcionar muito bem para quem está preocupado com o futuro económico do país ou com o Estado Social, mas pode ser péssimo se estivermos perante alguém convencido pela teoria da substituição populacional.”
Para os migrantes e refugiados, a MEERU é um “paralelo” da realidade muitas vezes dura que enfrentam. É certo que existem os cartazes que levaram as crianças a fazer a difícil pergunta ao voluntário, é certo que o discurso de ódio ganhou espaço na TV e no Parlamento, mas essa, aponta Isabel Martins da Silva, não é “uma realidade única”. A metáfora que Safaa Ibrahim usou com os voluntários, pensa Mariana Morais, tem agora de ser alargada: “Tal como eles são uma janela do que são os portugueses para os migrantes e refugiados, nós agora também temos de ser uma janela de quem são estas pessoas para os outros portugueses.”
Este artigo foi publicado no Jornal Público de 11 de Maio de 2025.