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10 crises humanitárias que exigem a nossa atenção em 2024

Publicado a
18/1/2024

Com a chegada de 2024, os conflitos em Gaza e na Ucrânia continuam a dominar os media, mas é importante lembrar as muitas outras crises que são frequentemente esquecidas pelos meios de comunicação social e negligenciadas por aqueles que prestam apoio humanitário – muitas vezes devido à sua complexidade ou à sua relativa falta de importância geopolítica.

Enquanto as operações de Israel para destruir o Hamas entram no quarto mês, o número de mortos aproxima-se dos 23.000 e 85% da população de 2,3 milhões de pessoas – que não consegue abandonar o território – continua deslocada devido aos bombardeamentos e às invasões, a escassez de bens essenciais na “inabitável” Faixa de Gaza é inacreditavelmente elevada. Dezenas de milhares de palestinianos estão doentes ou feridos, mas quase nenhum hospital está em funcionamento, e o cerco total de Israel está a impedir a entrada de quase toda a ajuda humanitária, à exceção de uma pequena parte, enquanto corta o fornecimento de água, alimentos, combustível e electricidade. Os comentários dos ministros israelitas de extrema-direita alimentam acusações de limpeza étnica e genocídio. Na Ucrânia, milhões de pessoas encontram-se deslocadas e enfrentam uma constante ameaça de bombardeamento, num país onde a invasão Russa está longe de terminar, mesmo com a atenção internacional a diminuir.

Mas as pessoas de Gaza e da Ucrânia não sofrem sozinhas.

De acordo com os números mais recentes da ONU, quase 300 milhões de pessoas em 72 países vão precisar de assistência e proteção humanitária em 2024. A nível global, os planos de resposta em 2023 foram financiados em menos de 40%, sendo que, à medida que a ONU reduz as suas ambições, as perspetivas de donativos e financiamentos para este ano são ainda mais escassas.

No início de 2024, dezenas de milhões de pessoas afetadas nos focos de conflito abaixo assinalados encontram-se em situação de perigo ou fome extrema, agravada pelas restrições de acesso ou pelas limitações de financiamento, que significam a impossibilidade de apoio por um sistema internacional de resposta a emergência humanitária sobrecarregado e focado noutros locais.

Sudão: Alegada limpeza étnica e o maior foco de deslocação interna do mundo

© Zohra Bensemra/Reuters

Números: 25 milhões de pessoas (mais de metade da população) precisam de assistência humanitária. Mais de 7 milhões de pessoas estão deslocadas.

O conflito que eclodiu, em abril, entre o exército sudanês e as Forças Paramilitares de Suporte Rápido (RSF) deu origem à maior crise de deslocação interna do mundo. Mais de 7 milhões de pessoas abandonaram as suas casas, incluindo 1,5 milhões que fugiram para fora do país. A cidade de Cartum foi destruída e as RSF estão a ser acusadas de cometer limpeza étnica e crimes de genocídio no Darfur. Os esforços de mediação falharam e os grupos de assistência humanitária, para além de contarem com um financiamento limitado, enfrentam um dos ambientes operacionais mais difíceis do mundo. Os grupos sudaneses de apoio mútuo são os principais responsáveis pela resposta humanitária, mas têm recebido pouco apoio de doadores internacionais, levando a que muitos se vissem obrigados a interromper o seu trabalho. Os receios de que o Sudão esteja a enfrentar uma divisão parecida com a da Líbia, entre um Ocidente controlado pelas RSF e um Norte e Leste controlados pelo exército, estão a levar a preocupações de que as RSF – que estão numa ofensiva de charme diplomático à medida que consolidam a sua vantagem militar – tenham como fim último o poder total.

Myanmar: Vitórias anti-junta trazem esperança e medo

© Soe Zeya Tun/Reuters

Números: 2,5 milhões de pessoas deslocadas, incluindo mais de 660 mil só desde finais de outubro de 2023. Apenas um terço do plano de resposta para 2023 foi financiado.

Pela primeira vez desde que o governo militar assumiu o poder em fevereiro de 2021 – levando à prisão de Aung San Suu Kyi, cujo partido tinha obtido uma vitória eleitoral esmagadora meses antes – dezenas de grupos armados estão a unir-se para enfrentar a junta e vencer. Enquanto alguns vêem as vitórias destes grupos, que ascendem a mais de 250 no total, como um sinal de que a junta se encontra finalmente em desvantagem, e esperam que possa, eventualmente, levar à sua queda, outros temem que a resposta violenta dos militares possa conduzir a um aumento das necessidades de ajuda humanitária num país que já recebe muito pouca atenção global. A curto prazo, esta última situação já está a manifestar-se, uma vez que mais de 660.000 pessoas ficaram recentemente deslocadas desde que os combates se intensificaram no final de outubro. Devido ao facto de a junta ter restringido, durante muito tempo, a entrada dos grupos de apoio internacional, crescem os apelos para que os grupos de apoio local recebam mais apoio.

Haiti: Será que a intervenção internacional vai melhorar a situação?

© Richard Pierrin/AFP

Números: Mais de metade da população do Haiti – cerca de 5,2 milhões de pessoas – necessita de assistência e proteção humanitária. Mais de 4.000 pessoas foram mortas pela violência de gangues em 2023, significando um aumento de 80% em relação a 2022. As violações e a violência com base no género atingem níveis sem precedentes.

A violência causada por gangues tem vindo a sufocar o Haiti desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021. À medida que os assassinatos e as violações continuam a aumentar na capital do país – e a espalhar-se por outras partes da nação caribenha – uma força militar, apoiada pela ONU e cuja entrada foi adiada devido a desafios legais no Quénia, poderá chegar ainda este ano para tentar reprimir a violência. No entanto, o Haiti não tem representantes oficiais eleitos, levando a que a população tema que qualquer força armada internacional que consiga controlar os gangues continue a apoiar as elites políticas e financeiras corruptas do Haiti. Entretanto, a necessidade de assistência humanitária está a aumentar, num país onde o acesso a ajuda é extremamente difícil de negociar. Cerca de 200.000 pessoas encontram-se deslocadas – uma situação que se agravou desde que 115.000 haitianos foram deportados de outros países em 2023. Cerca de 3,3 milhões de pessoas não têm acesso a água potável e, em algumas zonas da capital, quase todas as pessoas sofrem de fome severa, conseguindo apenas uma refeição – ou menos – por dia.

Sahel da África Ocidental: Insurgências pioram sob o governo da junta

© Zohra Bensemra/Reuter

Números: 8,8 milhões de pessoas carecem de assistência humanitária no Mali; existem quase 400 mil deslocados internos. 3,7 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária no Burkina Faso; há mais de 2 milhões de deslocados internos. 4,3 milhões de pessoas precisam de assistência humanitária no Níger; há cerca de 335.000 deslocados internos.

As insurgências jihadistas e a instabilidade política estão a agravar-se no Burkina Faso, no Mali e no Níger, três países vizinhos atravessados pela faixa do Sahel. Os líderes militares tomaram o poder no Níger no ano passado, o que significa que as juntas governam agora toda a região. Estas, apesar de contarem com um apoio local significativo, estão diplomaticamente isoladas. Após o golpe de Estado, os ataques jihadistas continuam a acontecer, e as sanções impostas ao país pela Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) estão a causar dificuldades a nível nacional. A junta do Burkina Faso suspendeu os esforços de diálogo com os grupos jihadistas em prol de uma “guerra total”, e os insurgentes estão a impor cercos às comunidades que apoiam o exército. Entretanto, no Mali, a junta expulsou uma missão de manutenção da paz da ONU que contava com mais de uma década de presença no país, e deu início a uma nova e perigosa guerra contra os grupos armados dominados pelos grupos rebeldes tuaregues que operam no norte do país.

O Corno da África: inundações, conflitos e rivalidade no Mar Vermelho

© Walter Mawere/CARE Internacional

Números: 49 milhões de pessoas (na região do Grande Corno de África) sofrem de insegurança alimentar aguda. Mais de 19 milhões de pessoas (na região do Grande Corno de África) deslocadas devido a conflitos, secas e inundações.

Após níveis recorde de seca, grandes partes do Corno de África enfrentaram recentes inundações catastróficas. Cerca de 2 milhões de pessoas ficaram deslocadas quando aldeias inteiras foram devastadas pelas chuvas induzidas pelo El Niño. Os conflitos também estão a aumentar em toda a região. O acordo de paz entre o governo da Etiópia e a região de Tigray dura há mais de um ano, mas os obstáculos permanecem e os combates eclodiram em Amhara e Oromia. A ofensiva da Somália contra o grupo extremista Al-Shabab parece ter estagnado após algumas vitórias iniciais, enquanto os esforços regionais para travar a guerra no Sudão estão a ter um impacto limitado. As rivalidades no Mar Vermelho também estão a aquecer: as ambições portuárias da Etiópia, que não tem acesso ao mar, levaram a um acordo com a costa da Somalilândia, uma região separatista da Somália. Mogadíscio, que vê a área como parte do seu território, anulou simbolicamente o acordo e referiu-o como um “ato de agressão” que viola a sua soberania.

República Democrática do Congo: Números de deslocados internos batem níveisrecorde  enquanto são retiradas as forças de manutenção da paz

© Arlette Bashizi-TNH

Números: Quase 7 milhões de deslocados internos. Mais de 25 milhões em situação de crise de insegurança alimentar.

A crise de deslocados internos na República Democrática do Congo atingiu um recorde de 6,9 milhões no ano passado. Em 2024, a situação já conta com um início turbulento. O Presidente Félix Tshisekedi foi declarado o grande vencedor das eleições de dezembro, mas os candidatos da oposição exigem uma nova eleição, mencionando a existência de irregularidades generalizadas. Entretanto, uma missão de manutenção da paz da ONU de longa data está a acelerar a sua retirada, mesmo quando a situação de segurança se deteriora. Os combates têm sido especialmente intensos na zona leste entre o grupo rebelde M23, apoiado pelo Ruanda, e o exército congolês, que é apoiado por milícias locais e mercenários estrangeiros. A população também enfrenta situações de segurança alarmantes na região nordeste de Ituri e em toda a região de Quivu.

Síria: O detrimento continua à medida que a atenção diminui

© Hameed Maarouf/UNHCR

Números: 15,3 milhões de pessoas careciam de ajuda humanitária antes dos terramotos de fevereiro; 120 mil deslocados forçados pela violência desde outubro, somando-os à “maior crise de deslocação forçada do mundo.”

No início de 2023, a necessidade de ajuda humanitária já atingia um nível recorde na Síria, devido ao colapso económico, às alterações climáticas e a uma guerra de há muito, ainda por resolver. No final do ano, a situação estava muito pior. Uma série de terramotos massivos atingiu o sudeste da Turquia e o norte da Síria no início de Fevereiro, matando mais de 4.500 pessoas na Síria (bem como mais de 50.000 na Turquia), destruindo ou danificando dezenas de milhares de casas e afetando milhões de pessoas numa zona do país onde a maioria já se encontrava em situação de crise. Em julho, o Conselho de Segurança da ONU não conseguiu renovar uma resolução que permitia a entrada de ajuda humanitária através da fronteira entre a Turquia e a Síria, o que significa que o acesso a esta parte do país, controlada por grupos rebeldes, depende agora da permissão do Presidente Bashar al-Assad. Em outubro, o governo sírio e os seus aliados russos começaram a bombardear Idlib numa grande escalada, matando civis e forçando 120 mil pessoas  a fugir das suas casas. A isto acresce um surto de cólera e um financiamento humanitário tão baixo que o Programa Alimentar Mundial afirma que irá interromper a sua assistência alimentar geral em janeiro de 2024, tornando as perspetivas extremamente preocupantes.

Iémen: Ataques dos Houthi no Mar Vermelho ameaçam uma paz inalcançável

© CARE

Números: 21,6 milhões de pessoas em carência de ajuda humanitária. O financiamento para a ajuda coordenada pela ONU está a diminuir: 62% em 2021, 53% em 2022 e 38% em 2023.

Durante quase dois anos, os rebeldes Houthi, do Iémen, e o governo da Arábia Saudita – que apoia o governo internacionalmente reconhecido do Iémen – têm discutido o fim do conflito. Estas conversações nos bastidores produziram alguns frutos, mas não a paz, e as tentativas dos Houthi para se juntarem à guerra entre Israel e o Hamas, atacando a navegação comercial no Mar Vermelho, têm o potencial de mudar mais uma vez a dinâmica. Entretanto, a enorme crise humanitária do país continua: o Iémen enfrenta outro surto de cólera que se está a espalhar rapidamente, e o PMA anunciou, no final de 2023, que iria suspender a sua assistência alimentar geral no norte do Iémen, governado pelos Houthi, devido ao baixo financiamento e a um colapso nas negociações com as autoridades sobre quem deve receber ajuda. As ONG que trabalham no país, que tem um problema de fome de longa data, alertam que a suspensão “exacerbará a já crítica situação humanitária, afetando desproporcionalmente as populações mais vulneráveis, incluindo crianças, mulheres grávidas e idosos.

Venezuela: As esperanças de uma détente diminuem em 2024

© Frederico Parra/AFP

Números: 7,1 milhões de migrantes em todo o mundo; quase 6 milhões na América Latina, dos quais mais de 5 milhões precisam de ajuda humanitária. 7,7 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária na Venezuela.

A decisão do presidente Nicolás Maduro, em dezembro, de anexar a região guianense de Essequibo, rica em petróleo, foi apenas a mais recente de uma série de acontecimentos no final de 2023 que diminuíram a esperança de um fim à crise política, humanitária e económica, que levou mais de 7 milhões de venezuelanos a migrar desde 2015, e deixou os restantes 28,7 milhões a enfrentar uma hiperinflação, serviços de saúde destruídos e fome. O governo de Maduro assinou um acordo com a oposição, em outubro, para preparar o caminho para eleições livres e monitorizadas em 2024 – isto incluiria o levantamento das sanções dos EUA sobre a outrora poderosa indústria petrolífera da Venezuela. Poucos dias depois, a ONU concordou em gerir um fundo fiduciário para descongelar ativos sancionados da Venezuela no estrangeiro, para responder às necessidades humanitárias. Mas à medida que a oposição ganhava força, Maduro procurou reafirmar o seu poder, prendendo líderes importantes. Juntamente com a medida de Essequibo, o risco de reimposição de sanções dos EUA torna-se cada vez mais real, desestabilizando a região e exacerbando, mais uma vez, as graves necessidades humanitárias da Venezuela.

Afeganistão: o dilema do envolvimento

© UNICEF Afghanistan

Números: 23,7 milhões de pessoas precisam de assistência humanitária. 6,3 milhões em situação de deslocação prolongada. 3,7 milhões de crianças fora da escola, das quais 2,2 milhões são raparigas.

Anunciada em 2023 (antes da erupção do conflito em Gaza) pela ONU como a maior crise humanitária do mundo, o Afeganistão saiu do radar dos media internacionais desde que os Taliban retomaram o poder em agosto de 2021. Embora as deslocações forçadas, causadas pelo conflito existente desde a retirada das forças ocidentais, tenham reduzido drasticamente, o país ainda enfrenta os efeitos de quatro décadas de guerra, os crescentes choques climáticos e um governo do Emirado Islâmico que continua a ser acusado de abusos de direitos, enquanto é sancionado e condenado ao ostracismo pela maior parte da comunidade internacional. Alguns interrogam-se sobre como retirar os Taliban desta situação de isolamente, especialmente à luz de uma série de terramotos devastadores em Herat, em outubro, e depois da recente expulsão de centenas de milhares de afegãos do Paquistão, país vizinho. Embora as discussões em torno do tema tenham aumentado, os críticos do envolvimento querem ver mais progressos nos direitos das mulheres antes de reconsiderar questões como a recusa do reconhecimento diplomático, as reservas congeladas do banco central afegão e as sanções aos líderes talibãs.

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Este artigo é uma tradução da MEERU da publicação do The New HumanitarianWhy these 10 humanitarian crises demand your attention now”.

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